A linha final não é o fim. Quando o corpo falha, a alma fala. E cada passo vira oração, cicatriz e conquista.

Uma jornada de disciplina, dor, fé e autodescoberta, onde a maratona se torna metáfora da vida. A linha final não encerra nada, apenas revela quem você se tornou no caminho.

Crônica por Marcos Trestin | Trestto

12/2/20257 min read

Hoje minha viagem pela gastronomia será um pouco diferente.
Ela começou lá em janeiro, quando o calendário ainda cheira a missa de Ano-Novo e o sino da capelinha do bairro marca sete badaladas preguiçosas. Enquanto alguns fazem promessas, eu laceio o tênis. O asfalto é minha estrada, meu campo de penitência, meu caminho de Compostela particular. A partir de hoje cada manhã tem um clima próprio, às vezes um calor de deserto, outras, um frio que parece ter sido encomendado do Vaticano, e, em certos dias, uma chuva fina que cai como água benta, mas sem a parte da bênção.

No começo, eu ainda cruzava restaurantes e padarias como quem passa por tentações, vitrines de sonhos, croissants dourados, taças de vinho piscando nos almoços de domingo. Mas bastava lembrar que estava em preparação, dormir cedo, treinar diariamente, dizer não às festas, às sobremesas, ao último gole. A abstinência gastronômica transformava qualquer prato simples numa ópera de aromas proibidos.

E, talvez por isso, aquele incrível ossobuco com polenta que sempre sonhava em comer virou símbolo de uma utopia distante. Um prato que se tornou personagem e promessa, a recompensa murmurada no fim dos treinos longos, como uma aparição luminosa no horizonte. Ao lado dele, na imaginação, brilhava uma taça de Primitivo Clássico, com aquele perfume de cerejas maduras e leve toque terroso, como se tivesse sido colhido à beira de uma trilha em Puglia.

Mas janeiro virou março, depois junho, e a disciplina, essa mãe teimosa e carinhosa, segurou minha mão e me disse: "Não desista Agora!." E eu obedeci, quase sempre.

Essa mãe impiedosa, a disciplina, conhecia meu objetivo com uma clareza que eu às vezes perdia. Ela não me abandonava nem nos dias em que eu queria abandonar a mim mesmo. Mantinha-me de pé quando o cansaço tentava me dobrar, tirava-me da cama quando o mundo inteiro parecia confortável demais, e sussurrava firme para que eu não me deixasse escorregar para o esquecimento, para o silêncio do ostracismo, para o abraço morno da preguiça.

Ela arrancava de mim a vida social, transformava festas em luxos distantes e fazia de cada evento um detalhe irrelevante diante do que eu tinha prometido a mim mesmo. E quando eu lembrava dos treinos já feitos, dos quilômetros solitários, das manhãs frias, das dores que vinham como visitas indesejadas, e dos treinos que ainda me esperavam, era ela quem me puxava de volta ao caminho, afastando as distrações com a severidade de quem ama demais para permitir que eu desvie.
E foi ali, passo após passo, na solidão que machuca e ensina, que eu percebi, meu objetivo era alcançar a linha final, mas a disciplina era o próprio percurso. O fim era só um ponto; o caminho, esse sim, era a verdadeira vitória.

A cada treino o GPS do relógio, recalculava sempre as rotas e isso parecia seu passatempo favorito. Ele vibrava no pulso como um padre distraído que reza a missa no tom errado, sempre insistindo que eu estava mais lento do que eu me sentia. Quando a chuva caía, o coitado enlouquecia, marcava voltas inexistentes, inventava ritmos heroicos ou trágicos. Uma tecnologia bem-intencionada, mas com humor de adolescente.

Depois de meses empilhando treinos, enfrentando dores e me vendo mentalmente nesta cena inúmeras vezes, enfim amanheceu o grande dia.

A ansiedade dos dias anteriores é quase um esporte à parte. Na véspera, finalmente pude comer com propósito, carboidratos, água, mais água, e uma dose generosa de fé. No hotel, fiz alongamentos enquanto olhava para uma miniatura de crucifixo pendurada na parede, lembrando que todo sacrifício tem sua liturgia.

Cheguei duas horas antes. Hidratei-me. Aqueci. Corri pequenos trechos como quem desperta músculos adormecidos. E, de repente, éramos 16 mil peregrinos em busca do mesmo milagre, terminar.

Os primeiros quilômetros são um carnaval: gente gritando, música alta, cartazes criativos, braços que batem palmas como asas. A alegria é tanta que parece impossível que, em poucas horas, tudo isso vire outra coisa. Mas aos 10km o mundo já muda. A multidão se dissolve devagar, como tinta escorrendo na calçada depois da chuva. Os que correram provas menores atravessam sua linha de chegada; nós seguimos. A empolgação vira foco. O sorriso vira técnica. A festa vira trabalho.

Aos 15km, surgem as dores, primeiro discretas, como pequenas cartas de cobrança colocadas debaixo da porta. Depois, mais insistentes, como alguém batendo forte, cobrando juros atrasados. Aos 21km, quando cruzo a meia-maratona, só os teimosos continuam. Só os que carregam um propósito costurado no peito.

Aos 30km, o glamour acaba de vez. Começa outro universo, onde o corpo cobra o que você prometeu que pagaria. Câimbras beliscam as panturrilhas como brasas. Dores na lombar sobem como serpentes. A cada curva, um músculo torce, outro ameaça desistir.

Aos 35km, tudo vira emoção crua, sem filtro. Não é mais corrida, é um acerto de contas com você mesmo. A vontade de parar grita. A memória dos treinos ignorados aparece como fantasma. A culpa entra, a coragem tenta empurrá-la para fora, e os dois disputam espaço dentro do peito. Choro sem saber se é de dor, de medo ou de gratidão. É o ponto em que cada passo parece uma pequena Via Sacra.

Faltando 2km, o corpo está vazio. Não há mais energia, açúcar, reserva, estratégia. Só sobra vontade. Só sobra fé. A alma, essa sim, está cheia, de tudo que doeu, de tudo que resistiu, de tudo que aprendeu. O silêncio interno é tão profundo que até os gritos de incentivo chegam abafados, distantes, como se viessem do fundo de um sonho ou de uma igreja grande demais para a voz de um único padre. Caminho correndo, corro caminhando, o que quer que isso signifique. A dor vira professora severa. O cansaço vira oração sussurrada. E eu sigo, carregando minha cruz, um passo por vez.

E quando vejo a faixa final, percebo que essa maratona, assim como a vida, não se corre com o que se tem, corre-se com o que sobra depois que tudo já foi gasto. É com as migalhas de força, com as faíscas de fé, com o fio de vontade que ainda insiste. E, ao cruzar, entendo, o objetivo estava no fim, mas a transformação estava no caminho.

Terminei.
Ao som de aplausos que pareciam vir de muito longe, com um choro travado na garganta e o corpo inteiro tremendo, não de frio, mas de alívio. Meus olhos, marejados, procuravam desesperadamente pela minha esposa, pela minha filha, pelo meu parceiro de tantas corridas. Onde estavam? Será que tinham visto minha chegada? Será que ele, aquele companheiro que encontrei pelo km 30 e depois desapareceu no mar de dores e quilometragens, chegou bem?

A vontade era arrancar os tênis, esses guerreiros anônimos que guardaram para si cada impacto, cada pedra, cada renúncia, deitar na grama e apenas agradecer. Agradecer pelo tempo que passei comigo mesmo, pelas conversas silenciosas que tive com minhas próprias fraquezas, pelos medos que venci e pelos limites que sobrevivi. A maratona não me quebrou; ela me revelou.

E se cheguei até aqui, não foi sozinho.
Preciso agradecer à minha esposa, Glaucia, que, durante todo este ano, entendeu que cada domingo sem café juntos carregava um objetivo intransferível. Ela foi minha base, meu porto, minha parceira mais fiel, mesmo quando a disciplina me roubava do convívio.

Agradeço à minha filha, Giullia, que, mesmo preparando tudo aquilo que eu não podia comer, nunca fez disso uma barreira. Entendeu, com uma maturidade que me enche de orgulho, que não era rejeição, era necessidade. Era foco. Era amor por mim mesmo.

Ao Gabriel, namorado da Giullia, que, vinte anos mais novo, funcionou como espelho e lâmina, eu tentava acompanhá-lo sem me quebrar, ele me puxava para frente sem perceber. Um equilíbrio improvável, mas perfeito.

Ao meu técnico, da Manu Braga Performance Coach, que acreditou quando eu duvidei, que ajustou cada treino como quem esculpe uma peça final, e ao Dr. Paul Zambrano, que cuidou da máquina quando a alma estava cansada, exames, dietas, ajustes, tudo para que eu chegasse vivo, forte e inteiro.

Terminei... mas terminar não é cruzar uma linha. É reconhecer quem caminhou comigo, quem me sustentou, quem me amou nos dias em que eu só conseguia falar de pace, quilometragem e dores que não aparecem em exames.

Terminei, e ao olhar para eles, para os que estavam comigo antes, durante e depois, percebi que a maratona não foi sobre resistência física. Foi sobre amor, fé, renúncia e força absurda que nasce quando alguém acredita em você mais do que você mesmo.

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